terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Satolep, Vitor Ramil



Eu, que vivo no gasômetro, tenho tomado distância de tudo o que é sólido. À margem das formas, sou reservatório de coisas desfeitas.
É meu o rosto líquido que vejo na poça de chuva esquecida pela terra sob minha janela, rosto de quem quis infinitamente comprimir os fluidos da vida na esperança de guardá-la.
No gasômetro as coisas não são sólidas, mas custam a passar. Hoje um grito de criança, sumido da varanda em meu passado, veio vibrar sobre o telhado como o canto de uma ave vindo organizar no ninho antes de morrer; ontem, foi um pardal que desceu na água. Ainda posso vê-lo, agora que partiu, capturado pela luz no álbum aberto dessa superfície onde meu olhar move-se em pequenas ondas, devagar. Embalados pela brisa piedosa, esses pobres olhos feitos de restos de chuva imitam os imensos reservatórios que dançam lentamente, atrás. Não há música em mim que possa animá-los. No gasômetro venta, mas as coisas são silenciosas. Só o grito da criança no telhado se propaga. Meu rosto na água não ousa espiá-la. Por que me chama? O que pode esperar de mim? Sou uma mulher às voltas com o que não tem volta. Faz muito frio, não me deixariam ir lá fora. Dorme menina, dorme. No gasômetro as coisas custam a passar...

Um comentário:

  1. Midas não era aquele rei que tinha o toque de ouro? Então, você é como ele, ao tocar os teclados ou as folhas com lápis ou caneta ilumina as palavras e reluz beleza, mas diferente dele você desperta sentimentos do bem.

    PS - Trabelhei em uma madereira que chamava Gasômetro ;]

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